A minha avó Zulmira


Quem não gosta das memórias da casa da avó. Uma espécie de "associação recreativa" lá da terra onde se mantinha o encontro de primos e primas, de tios e tias e de algumas vizinhas que vinham "cuscar" para ver os netos da Zulmirinha.

Eu vivia longe desta associação e, fora as férias em que lá passava uma semana seguida, apenas frequentava a associação 1 vez por mês. Vivia longe, a mais de 60km, o que na altura, sem auto estradas era muita curva e contra curva para lá chegar.


Não era aquela avó que fazia comigo os trabalhos de casa, nem me ia levar e buscar à escola e outras rotinas, como se pratica muito nos dias de hoje. Mas era a avó que guardava todas as suas reservas de beijos para mim e para todos os seus netos. 

Era a avó que tinha a casa e o pátio grande, o tanque que lavava a roupa e onde me deixava esticar os membros e dar as minhas braçadas.Era a avó que me dava guarida nos fins de semana, quando os meus pais queriam ir namorar ou tinham afazeres politicos ou de bola, que tinha videiras, lagares e pipas para a vindima. Era a avó que me dava a experimentar o travo de café no leite, quando não tinha neskuit, mas em contrapartida ao sabor amargo da chávena de leite ao pequeno almoço, fazia umas torradas maravilhosas barradas com o saudoso tulicreme de chocolate.


Em contraste com a minha mãe que era, e continua a ser tão arrebitada, a avó era calma, doce, tímida. Por lá só tinha o mimo, mesmo que dividida pelos outros primos e sei que mesmo que cansada do dia a dia, ela guardava uma boa dose de ternura para mim e para o meu irmão, pois como a presença não era diária a dose de beijos era a triplicar e intensa.

Nos fins de semana esgotava por lá todas as minhas forças a correr nos campos, mas recarregava-me de energia e ar puro, só com  amor de avó, primos e tias solteiras. 

A Zulmira nunca ralhava, nunca reclamava. Só queria ter a certeza de nos saber felizes. Sem intrigas. Só delicadeza no seu olhar de esperança,onde podiamos encontrar a segurança necessária.Era a  ternura da doce Zulmira, que nos dava sempre razão e que nos colocava no caminho, para que tudo fizesse sentido.

A Zulmira era sincera na critica e cheia de elogios aos outros: na crítica quando falava que os homens nada faziam em casa e me instigava a aprender bons conselhos, aliás muito atuais nos dias de hoje, de como lidar com um casamento; Era cheia de elogios, pois não me esqueço quando ela me dizia que eu era bonita como o meu pai. Fui a sua primeira neta, a menina do seu primeiro descendente macho. 

Mas a doçura da doce Zulmira contrastava com o " barulho" da sua alargada familia construída. 7 crias, 12 netos e 6 genros e noras. Não era fácil. Mas ela sorria. Mesmo quando os tentava colocar todos à mesa. Aos domingos de quando em vez, mas com presença reservada nas festas, nos aniversários, nas festas da aldeia e no dia de eleições. Ainda hoje sinto saudades do cheiro a leite creme um pouco queimado, do estrugido da cebola meia queimada para o arroz e do bacalhau à Zulmira que o implementei em minha casa. Estes três cheiros ainda hoje me fazem recordar a casa da avó e me transportam para a mesa do almoço bem demorado nas conversas.

Uma mulher que não tinha pulso para a grande minhada que deu alimento, cuja genética de grande timidez e calmaria não passou, pois saíram todos muito ao pai, cheios de sangue na guelra, mas sei que os admirava cheia de orgulho pelas suas conquistas. 

Eu aproveitei sempre o melhor da Zulmira e herdei-a no gosto pela roupa preta. De cigana. De união. E homenageio-a todas os dias quando acordo às 6:00h como ela, e todas as noites quando  me revejo nela, pois ela recolhia ao quarto,soltava e penteava o seu longo cabelo e relembrava de olhar ao espelho, em jeito de diário aberto o repositório de memórias do dia.

A zulmira zumbia à nossa volta. Zumbe até hoje. Numa espécie de ferrão que morde os seus. Não me esqueço da sua voz e do seu beijo.
Não me esqueço da sua beleza de cara fina, olhos grandes e não me esqueço do seu louceiro na cozinha que me reporta para as manhãs de conversa, sobre a vida dificil de criança, e ficará sempre em mim gravado o seu gosto pelo que é antigo e de ter pratos velhos na parede.

Não podia ter tido mais sorte. Quando me deixava correr, suar, sujar os pés, aos mãos e a roupa toda. Quando me deixou viver e sentir de pé bem descalço a terra batida e o calor do alcatrão da sua porta.
Éramos o gangue da unha preta. Mas felizes.